segunda-feira, 15 de julho de 2013

na grama com sol de domingo eu quis nascer de novo
e rabiscar com giz todos os sorrisos que vi naquele dia
seus escritos me dão cócegas aqui por dentro
cócegas de suspense e adrenalina
e até de repulsa, um pouquinho
mas a atração é mais forte
dá vontade de rir um riso meio assustado.

domingo, 14 de julho de 2013

queria ter estômago infinito
pra comer de todas as emoções
ácidas, medonhas
destrambelhadas
sem que, a cada crise
derretesse mais um pedacinho

terça-feira, 9 de julho de 2013

Constituída no formato ferrugem e em bordas de desgaste, escorre pálida entre tijolos nossa cultura extravasada. Estatizada por falta de verba, estereotipada por cabeludos míopes, pedinte por seu próprio espaço, pedestre pela existência - e pela ausência do contrato - da sua própria casa: a rua. Em uma antiga oficina, artistas encantados e decadentes, em construção, depõem em versos, melodias e performances suas vontades e frustrações. Celebramos, juntos, os feitios desumanos de um cotidiano destituído de cor - desintegração mecanizada a que fomos submetidos. O que acontece quando permitimos? O que esperar de rumores abafados em paredes sós? Sótãos anarco-conduzidos a um espectro esfumaçado de gritos contido-politizados. "Nem esquerda, nem direita": "o negócio é comer cu e boceta!". Cuspimos verdades ásperas sobre direitos humanos, a teoria, e sobre a prática, déspota, pós-graduada em deveres levianos. Sobre evangelismo, reacismo e extremismo, um individualismo coletivizado. Identidades próprias em destruição: valores pisoteados em marcha, ritmada e forte, sobre o chão. Tiramos as roupas para uma nação embandeirada. Escondidos sobre a embaixada, éramos rouquidão, sussurro atormentado; éramos punho fragilizado pela criminalização do escambo de emoções. Em acordes melancólicos: "Caiam com o congresso! Estuprem o (real) vandalismo!" Entre esboços deteriorados e versada pela constante mutação, a cultura atravessava formas destoantes em movimento, uníssono pela polifonia, fanático em poesia e pautado contra todos os anti-liberdade, os anti-expressão e, principalmente, os anti-contradição.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

( )

descíamos as escadas enquanto ela me falava do vento
pulávamos degraus enquanto roçava, aguda que nem fio de cabelo no rosto, toda a instabilidade.
me beijou como quem beija uma menina e me sorriu como quem ri de brincadeira.
me quis como quem quer pra já e me teve como quem prolonga a espera.
me esmagou como quem se entrega sobre o peso do corpo
me repuxou como quem nem sabe o que faz.
me soltou
como
quem
tem
medo.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Fazia tempo
que não chovia
que não escorria
gota
assim.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

6 de junho - Capítulo I

Oito da noite, quinta-feira na Paulista. Seria normal trombar com alguns tantos engravatados entristecidos, cansados pela rotina laboral à qual são diariamente submetidos. A burocracia, os carrões e tudo bem, tudo sempre bem, que era quase sexta, já era quase amanhã. Explosão. Estávamos imersas na loja de chocolates, a qual largamos às pressas, e só porque "corre, vem ver, vem ver!". Multidão. Jovens de preto, bandeiras coloridas, gente estampada-escancarada; carregavam faixas de letras grandes que condenavam o aumento da passagem de ônibus. "3,20 é roubo!", e como era, e como é. Juntamos crenças e sapatos, "Ésse-pê parou!", respiração ofegante, batuque de rua, batuque aqui de dentro. "Se a passagem aumentar!", sacos de lixo derrubados, fogo e fumaça. "A cidade vai parar!", vidros dos metrôs quebrados, pichações. A primeira cabine da polícia sendo derrubada e chutada bem ali, do nosso lado. Mascarados, realizados, sorriam e se aplaudiam. Cúmplices, presentes, aplaudíamos em uníssono, mudas em sorrisos extasiados. A Avenida dominada por nós.
O caos era de um desequilíbrio organizado. Unidos, todos, por um mesmo ideal - ainda que unidos, todos, sobre si mesmos, por suas vertentes próprias. "Vocês tão olhando feio por quê? Andam de carro, né!". Olhos assustados- engravatados, surpresos pelo não convencional em meio à tradicional rotina cinza - condenavam os "meliantes". E olha o trânsito, a cidade parou. E olha a baderna, a cidade parou. E olha pra gente: a-cidade-parou.
Espera, espera, não olha agora, mas acenderam as luzes - e não as da avenida, que conseguimos apagar, cidade escura moldada à nossa cor - acenderam as luzes vermelhas, aquelas ali atrás que vêm embaladas em incômodo: sirene. "Sem correr, sem correr!" Espanto. "Sem correr, sem correr!" Explosão. "Corre!".
A praça lotada dos mais diversos figurinos deu lugar a tiros de borracha, spray de pimenta e um batalhão de homens nervosos querendo impor respeito. Nunca me deram esse respeito, quis dizer. Quis dizer, mas que infâmia, nunca me deram farda e chapeuzinho.
A multidão se escondia no shopping enquanto nós nos espreitávamos na primeira loja que nos surgiu; por acaso, intimista, lingeries. As portas do shopping fechando, as luzes-sirenes se acumulando, o nariz ardendo e os gritos, os gritos, os. Ironia escorria em risada desesperada. Entraram eles, todos, correram eles, todos, invadiram eles, todos, nada menos que o Shopping Paulista. Policiais pararam de atirar. Consumo, carrões, sentido. Como poderiam afinal, eles próprios, destruir seus próprios existires? Mas tudo bem, tudo bem, que quem apanha é sempre o errado - quem destrói e desrespeita o que é de direito público - esses manifestantes folgados, é claro.
Três ou quatro ou dezessete minutos dentro daquele aquário, em observação - sendo observadas? - até a tensão parar. "Vocês não estavam aí nesse enrosco não, né?". A dona da loja e o celular na aflição; mas tudo bem, tudo bem, que a filha estava muito bem dentro da faculdade, muito bem segura entre as paredes, entre os deveres. Respeitada, a menina.
Saímos pela lateral, contra-fluxo, pé-ante-pé visando a calçada já vazia, quando inúmeros carrões da tropa de choque passaram exibindo seus enormes pênis de plástico. Conseguia ler, em seus olhos, o famoso jargão "eles estavam pedindo". Dei risada. Andei e - agora sim - gargalhei quando vi o carro de bombeiros, com toda sua pompa e seu poder, apagando chamas gastas de uns sacos de lixo espalhados próximos à Brigadeiro. Sobras de um carnaval fora de época; na hora certa. Inversão momentânea, foco distoante, helicópteros e câmeras de tevê, ali, onde passa-se todo dia, sem perceber. Ali, onde vive-se todo dia, sem perceber.
Era câmera lenta na Paulista, agência Reuters ao vivo, escuridão e gás, mas estávamos atrasadas para o teatro. Contra-fluxo, inebriadas, esgarçamos nosso tempo, passos apressados flutuando excitação.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Era fim de tarde quando Maria chorou. Maria tem as pernas finas, o rosto pintado e um medo imenso de morrer. Maria, menina, não chora, vem cá. Maria, segura o medo, segura o choro, segura aqui a minha mão, ó. Lembro da cor do céu, vazio de fios e de nuvens, que resplandecia cortado pelo vento úmido quando Maria chorou. Era de um laranja seco, de arder o olho mesmo de quem, orgulhoso como eu, não chorava. Maria estava perdida, e se desencontrava mais e mais nos dias em que não me puxava para conversar.
Maria, estou aqui, se acalma. Maria, respira devagar, que a gente vive mesmo é pra se jogar, se ralar inteiro e sofrer. Resta só continuar respirando, ainda que sem fôlego.
Maria nunca foi de se permitir sentir, e isso porque sempre soube que era de sentir demais. Até que foi pega assim, desprevenida, pela invasão de um sentimento todo novo, sorrateiro e safado que adentrou seu corpinho de criança-crescida pra espancar os cantos mais frágeis de suas barreiras auto-construídas. Maria se apaixonou outra vez, quando já havia se prometido - e me jurado - que amar outra pessoa de novo era balela, maluquice intransponível, logo ela, logo ela, que já sentira tanto, não havia de ser, não não, era impossível. Maria perdida, me puxando pela mão.
Maria, a vida faz dessas com a gente. O céu laranja, o vento rasgado. Maria, põe um casaco, que vai esfriar. Maria me ouvia, mas não reagia. Eu titubeava. Maria chorava. Eu, resgatando o íntimo mais teatralizado de mim, contava com a mais opaca das expressões, na pretensão de sonegar minha - nossa - tranquilidade. Maria, seja forte - eu dizia pra ela e pra mim. Maria, paixão é desses sentimentos que só sabem trazer beleza - eu mentia pra ela e pra mim. Tudo vai acabar bem, Maria. Eu suspirava: que nem com a gente, Maria, que nem com a gente.
Maria chorava no meu colo que nem criança. Que nem eu chorei por tantas vezes no dela. Que nem quando a gente era criança. Que nem quando a gente é. Maria, a gente não é mais. Maria, pára de ter medo, vai. Eu desenrolava na língua palavras impensadas, como que para me livrar de carregá-las sozinha.
O céu laranja, o vento rasgado. Num sobressalto de segundo, o ar bateu ríspido no rosto de Maria e ela reagiu como alguém que, de repente, acorda. Maria concorda. A feição infantil sumia, e ela, a minha Maria, me olhava agora com olhos de realização. Maria agora entendia, e eu também. Era ela, não mais minha, Maria. Maria apaixonada me condenava por me compreender no mesmo estado. Maria me condenava por saber que essa nossa tristeza de agora era mera desculpa de quem tem medo, também, de viver. Maria apaixonada me deduzia, como sempre me deduzia, encantada. Maria agora cúmplice, agora reconhecível, espelho, sensibilidade. Maria, não fala isso, eu não quero ouvir.
Maria e eu, perdidas em encantos díspares. Eu e Maria, com medo de escorregar, separadas. Eu e Maria com medo de pedir auxílio para outro colo, para outras mãos.
Maria, me deixa segurar a sua mão?

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Hoje eu vim pra falar da tranquilidade dessas suas pernas tortas puxando as minhas e da calma ensonada que me transmite esse seu ombro com cheiro - tão seu - de banho recém tomado. Vim pra falar do bloco afro que traz a sensaçãozinha rígido-respirada de você-de-volta, do viaduto paulistano de purpurina forrado inteiro pra nós e também do nosso colchão inventado, retalhado em piso de madeira, pronto no nosso imaginário de desejos a serem realizados (se equilibrando entre o crepe europeu e a pipoca com filme no sofá). Vim pra falar da inspiração-expiração suspirada que me invade quando você solta o cabelo lá de cima até o meio das costas, dá risada com o grampo no canto do lábio e sai pulando que nem criança boba que faz arte. Vim falar de artista, atriz, menina linda-sensível-intensa que você é, e do bem que faz numa tarde de domingo, numa madrugada de sexta, num começo de noite de segunda-terça-quarta-quinta e num sábado inteirinho. De correr na rua, de dançar pulando (ou de pular dançando), de todos os sentidos e sentimentos, "respirando humaneza sem culpa", de mãos dadas.

domingo, 14 de abril de 2013

"Há dois 'Eu posso' e um 'Eu preciso'
E depois um 'Eu devo'.
Tão infinito o compromisso
Que há num 'Eu quero'!"
(Emily Dickinson)
De sensações. A cada instante. Porque não conseguimos ser além de sentir. Híbrido.
O ponto certo da sensatez que mistura o "é" com o "sen-tir-se". Se permitir. Sentir, e ponto.
Que sentimos um mundo, e um tanto reprimido, e um tanto guardado, querendo ser vivido. Um eterno prestes-a-ser-vivenciado.
Por culpa intransponível de um quê medroso, tênue-viciado - irrompível a olho, corpo e senso nus. Um quê inexplicado.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

do latim,
desgaste.
substantivo masculino. oito letras, três vogais, cinco consoantes.
três sílabas.
des-gas-te.
de gastar.
corroer.
pouco a pouco, consumir pelo atrito.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Eu quero escorregar num passo de desequilíbrio enquanto danço.
Eu quero aprender essa coreografia: passo, descompasso, passo, descompasso.

terça-feira, 26 de março de 2013

"Você é ninguém?" Eu sou. "Você é ninguém?" Eu não. "Você é ninguém?" Sou eu.
Ei, sou eu.
Ninguém.

Se eu te pedir, você corre pro teatro comigo? Ando transbordando todas essas minhas sensibilidades, mas, vê se você acredita, olha isso: eu não consigo chorar.
Só no teatro consigo chorar. E preciso tanto.
Você corre pro palco comigo? Só no palco consigo ser. Eu. Ninguém.
Consigo ser e chorar, quando tem palco. Quando tem eu.

Nesse final de semana senti saudades de alguém.
Nesse final de semana me perdi nos sentimentos de alguém. Não soube distinguir. Não soube entender.
Nesse final de semana te esqueci de ser.
Nesse final de semana me esqueci de ser.
Senti saudades de mim.
Me perdi em mim.
Não soube distinguir, entender, ser.
Nesse final de semana fui ao teatro.
E chorei.

O chão, as tintas, os trapos, as letras de música, a argila, a dança, os corpos, os rabiscos, os gritos, os beijos, os chorinhos, as coincidências, o papelão, os papelões.
O balde de água.

O feno, o chão, o vazio, o sujo, a busca, a e-xis-tên-cia. O papel-papelão.
"Vi alguém privado de sentimentos, nulo, sozinho (...), era esticado e leve, era rosado, e não sentia absolutamente nada, um dia na praia começou a correr em direção ao mar, mergulhou, e nunca mais emergiu, eu vi quando se fez em curva e apontou a cabeça para as águas, vi dorso, nuca, brilhos, brilhos na cabeça, pensei: estranho, moveu-se como quem sentiu".

Teatro amassa a gente. Espreme até escorrer sentido, ainda que em uma lágrima só, só.

Mas ninguém viu.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Aqui o céu é todo aberto, que nem naqueles campos de flores que tem em filme europeu. Aqui tem flores também, mas são menos expostas, e de cores menos vivas. Aqui dentro, a gente não respira. Não tem fio elétrico, proteção.

Do lado de cá, a areia cresce e corre entredentes, entre o vento. Metade de mim quer ir embora correndo. Metade de mim quer ficar pra observar os raminhos amarelos que crescem por entre as raízes insólitas do lado de lá.

É um lugar todo cheio de vazio. De nublado, de frio. De santo desgastado, de vaso quebrado, de planta pálida invadindo pedra gasta. De baixo, uma energia imensurável, emanando ar quente de uma não-respiração. Me pergunto se são suspiros, lamentações ou só desabafo de alma-sem-corpo, manifestando sua essência-existência-esquecida.

Nesse piso disforme tem calor.

Tem que ter grana pra chegar digno nessa periferia de esperança e indiferença. Tanto na ala dos túmulos-de-mármore quanto na dos buracos-com-montes-de-terra. Eu costumava achar que era tudo fechadinho, trancadinho, mesmo quando mal cuidado. Mas não. Tem flor seca, casinha de pedra abandonada, voz falha, capela arrombada.

Será que roubaram meu corpo?

sábado, 9 de março de 2013

O meu medo-empolgação, que há dias me impulsionava tranquila, hoje me irrompe impositor - trocou de lugar o simples do vento-de-balançar-as-folhas-e-deixar-cair, pela preocupação e força, arbitrárias, das raízes.
Esse medo, de ver os pedaços de casco desiguais, misturados em pedras, chão seco, música, chuva e cor, era seu, e eu roubei.
Hoje é seu dia de arriscar pelo inconcreto. Hoje é seu dia de largar minha mão e deixar esse medo cor-de-laranja te fazer cócegas.
Eu odeio cada sílaba do novo lirismo que você espreme, encantada.
Faz escorrer poesia desse sabão verde, composto por ar puro, reciclado. Me mostra pra ler num sorriso nervoso; me amassa o nosso caderno (agora) em branco, de-versos-mancos-que-já-se-fechou.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

"- Você já amou pela beleza do gesto? Você já mordeu a maçã com todos os dentes - pelo sabor da fruta, sua doçura e seu gosto? Você já se perdeu muitas vezes?
- Sim, eu já amei pela beleza do gesto, mas a maçã era dura e eu quebrei os dentes. Essas paixões imaturas, esses amores indigestos, deixaram-me mal disposto muitas vezes.
- Mas os amores que duram tornam os amantes exaustos - e os beijos deles, maduros demais, apodrecem-nos a língua.
 - Os amores passageiros têm fébres fúteis. E os seus beijos, verdes demais, esfolam-nos os lábios. Porque ao querer amar pela beleza do gesto, o verme da maçã escorrega-nos pelos dentes, nos quebra o coração, o cérebro e o resto, e esvazia-nos lentamente.
- Mas, quando ousamos amar pela beleza do gesto, esse verme da maçã, que nos escorrega entre os dentes, toca-nos o coração, o cérebro e o resto, e deixa-nos o seu perfume dentro.

- Os amores passageiros fazem esforços inúteis, suas carícias efêmeras cansam-nos o corpo.
- Os amores que duram tornam os amantes menos belos, as suas carícias usadas dão cabo de nós."

As-tu déjà aimé - Les chansons d'amour

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

"Vivo tão intensamente o momento presente que quase chego atrasada ao momento seguinte".
Rita Apoena

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

É proibido estudar

As ruas do Vale do Swat permanecem caladas, envoltas sobre névoa e silêncio acinzentados enquanto Malala respira errado num hospital britânico.
Malala é toda errada. Assim como seu pai. Assim, como nasceu. Assim como meninas paquistanenses, assim como ela. Malala Yousufzai tem os ossos danificados e alguns olhos - finalmente - voltados para os seus. Iniciada a oscilante guerra dentro de si - os ossos estalando contra os olhos piscando - permanecer acordada lhe proporciona a paz de um teto liso, enquanto seu próprio caos ecoa na rotina seca do Paquistão.
Nesse momento, o que pensa Malala?

Um blog e um codinome transmitidos mundialmente pela BBC formam o grito politizado que escorre incessante dos dedos de uma estudante (uma O QUÊ?) de catorze anos. Escorria; até o dia do ataque. "Merecia morrer", diz a nota emitida pelos integrantes do Talibã, responsáveis pela guerra contra a possibilidade de meninas frequentarem a escola no país; responsáveis pelo tiro que rasgou o ar para atravessar rasgando a cabeça de Malala. Por sorte, a bala serenou, alojando-se em seu pescoço. Irresponsáveis.
Nesse momento, como pensa Malala?

O país protesta contra a tentativa de assassinato. A Al Qaeda protesta contra a falha. O Talibã protesta em nome de Sharia, lei islâmica que diz que "até uma criança pode ser morta se estiver propagando contra o Islã". Pessoas de todo o mundo "conscientizam-se" e protestam, entre o intervalo da novela e o filé de frango, contra o-mundo-perdido-em-que-vivemos.
Nesse momento, por o que protesta Malala?

.

(Em homenagem à menina Malala, que recebeu hoje alta do hospital, após 4 meses de internação e cirurgia bem-sucedida no crânio. Texto escrito em outubro de 2012) .

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Amarelo. Um olhar caído. O corpo inchado. Um novo corpo - interno. Um novo nódulo, pra agravar o machucado. Uma bateria de exames e uma vontade imensa de te levantar. Um sorriso murcho, tão amarelo quanto seus olhos. O seu abraço, as nossas lembranças, deitados na cama, olhando prum teto mais rachado que nossos dedos secos. Minha mão quente, a sua fria. Nossos cérebros difusos - ambos aqui, e ambos aflitos. Quero te pedir pra ficar. Quero te pedir pra sempre me pedir, sem vergonha, pra ajustar o despertador nos horários dos remédios. Quero te pedir pra me contar mais um milhão de vezes todas as nossas um milhão de histórias. Não me importo de ouvir, mais uma vez, sobre quando líamos os sabores de suco ao contrário, na padaria, depois de comprarmos uns três gibis da Mônica e o nosso Cornetto de praxe. Nem de quando eu te descrevi como "um cara bochechudo, que nem eu", pra inspetora do Sesc, quando achei que tivesse te perdido, atrás dos cartazes da exposição. Nem da vez em que fomos pra Peruíbe e você gastou a vida com uma caldeirada e eu implorei por uma lasanha congelada. Nem de quando o gás vazou e os bombeiros invadiram o apartamento de vocês poucas horas antes de eu nascer. Ou das vezes em que descíamos aquela ladeira comprida, enorme, e eu virava de ponta da cabeça, colocando os pés em cima do porta-malas. Ou da vez em que você pagou um sorvete pro meu amigo japonês que, é claro, não pôde deixar de dizer o quanto você era legal por isso. Eu quero te encontrar de óculos escuros no seu carro velho ali na Vila Mariana e quero que você me leve pra comer mais um milhão de vezes naquela nossa "casa boa de esfiha". Eu quero que a gente vá no Central Plaza lembrar da época em que tinha cama elástica e assistir qualquer filme bobo no Cinemark. Eu quero te ouvir cantando e relembrando as vezes em que dançávamos naquela sala vazia, gelada. Hoje, ela parece muito menor - e muito mais vazia, já que você pouco desce. Eu quero, ainda, que você me conte sobre essa (nossa) família complicada. Quero entender cada pedaço que nunca me coube sequer saber. E eu quero que você me ligue em horários variados, enquanto eu estiver no trabalho-na-lanchonete-no-bar-na-casa-de-alguém, porque eu vou te atender. Eu quero clarear seus olhos, seus órgãos, sua cabeça, seu coração. Quero arrancar fora minha fragilidade, te apertar forte, perto de mim, e te passar toda a força do mundo. Quero conseguir te mostrar tudo isso, e tudo mais que eu quero, de carinho, de energia e de gratidão.

Quero que a realidade vire, distorça, mude. Quero corrompê-la. Quero criar uma bolha pra te proteger, e me enfiar dentro dela, junto com você, pra fugirmos de todo o angustiante, incerto e rasgante que sustenta esse momento.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sobre precauções

- Por que não pula pra lá?
- Ah, não, eu sempre sento nesse aqui, do lado de fora.
- Não gosta de olhar a vista pela janela?
- Gosto, claro, claro, mas é que estou sempre pra descer.
- Mas e se a pessoa do lado precisar descer antes?
- Aí eu viro pro lado e dou passagem, ué. É bastante simples.
- Mas se você, tanto quanto a outra pessoa, podem descer a qualquer momento, por que não escolher a janelinha?
- Ah, é muito mais difícil pra sair daqui quando se senta na janela. Além de não me distrair, correndo o risco de perder o ponto, sentando aqui eu não preciso pedir licença, atrapalhar, pedir desculpa e ainda descer toda torta, esbarrando em tudo. Tem risco até de cair, nesse chacoalho todo do ônibus.
- Mas aí fica olhando pro nada? Perde qualquer detalhe bonito que possa passar?
- Prefiro ficar aqui. Antes ficar aqui e não ter problema. Não tem problema, estou sempre pra descer, de qualquer forma.
Uma semana sem música no metrô, sem grifos no livro e sem uma gota de cerveja.
Uma semana inteirinha de realidade cuspida na cara.
Uma semana inspirando fundo cada um dos tantos segundos, inundados por peso, e com os dois pés muito bem juntos, fincados no chão.

Uma semana em abstinência de ilusão.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Eu já não lembrava como uma colisão de tantas ruínas, juntas, seria capaz de adentrar no mais íntimo-profundo-obscuro de todos os órgãos do corpo, no meio da noite. A madrugada cruel, fazendo careta no meu quarto; as falas, as falas, as falas correndo loucas no pensamento presente - impotente - à parte de qualquer cumplicidade.
"Tens uma máscara, amor, violenta e lívida, te olhar é adentrar-se na vertigem do nada, iremos juntos num todo lacunoso se o teu silêncio se fizer o meu, por isso falo falo, para te exorcizar, por isso trabalho com as palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros dos abismos, um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas, sílabas, um nascível de luz, ausente de angústia. melhor calar quando teu nome é paixão". Hilda Hilst

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

simples cidade, minha

Peso e leveza disputam constantemente pela minha atenção - mas o equilíbrio me chama e me puxa, todo completo, por ser meu, tão somente meu, exato e disléxico.
Minhas crises não vão passar, eu sei. Que vou deitar e que vai ainda pesar. Que vou continuar submersa em medo-vergonha-ansiedade-angústia-desespero. Nessa ou naquela manhã, nesse ou naquele meio de tarde. Mas que fica tudo bem.

Que fica tudo bem, por hoje, sempre fica tudo bem, por aqui, porque eu ainda posso fugir do trabalho no começo da noite e ver que existe claridade do lado de fora da redação; pular umas ruas até a Santos e tomar um chocolate quente da Kopenhagen com dupla dose de chantilly.
Mais do que posso, eu quero. E assim, por querer, não mascaro minhas angústias. Eu só me deixo viver, dançando desajeitada sobre o pesado que me carrega os dias.

Um cheiro de escola antiga, daquela minha região de saudade, toda desbotada. A sensação ansiosa de pular o último degrau da escada sem tropeçar, e fazer o mesmo quando acaba a rampa de correr da linha amarela do metrô, na adrenalina nervosa de não cair. Cruzar a banquinha da Frei esperando que alguém apareça. Ter o sorriso colado no sorriso de alguém. Relembrar as vezes em que corríamos juntos naquele monte de grama, antes de ele me fazer voar no balanço. Ter o vento das dez da noite atravessando a manga do meu moletom e ter o tempo tomado por uma conversa sobre os astros, os mundos e os pontos de vista de cada um. Dois copos cheios, algumas filosofias furadas, algumas muitas risadas. Esses tipos de coisa, que fazem feliz.
Eu sou feliz.

Sou feliz porque me deixo: vivo exposta à minha complexidade, que gosto tanto, respirando cada momento que consigo - que me esforço para - tornar simples. Que gosto do simples, também.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

"Ele alongou ainda mais o braço. O corpo acompanhava, num esforço tão grande e lento que precisou tirar uma das pernas do chão. Estendeu-a no ar, equilibrando-se a princípio precário sobre a outra, depois mais e mais seguro, enquanto o braço estendido, o tronco alongado e a perna suspensa formavam uma linha quase perfeitamente horizontal. O rosto agora tinha uma expressão de prazer. Ou de expectativa de prazer. À beira da alegria, o rosto. O que quer que estivesse no limite dos dedos, pensou o outro, estava para ser tocado no próximo segundo. E não conseguiu evitar certa tensão ao olhar fixo, meio hipnotizado, os cinco dedos excessivamente entreabertos. Tanto que - de onde estava, podia ver - os ossos nas costas da mão dele se faziam mais salientes. Nascendo do pulso, um feixe de cinco ossos finos, nervosos. Sem querer desejou que, fosse o que fosse, ali, guardado no ar, à espera do toque, entre as paredes brancas, os dedos encontrassem logo o objeto. Que se fechassem definitivos sobre eles numa espécie de posse, para alívio dos dois".

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Por um mundo onde seja mais fácil resistir ao café rasgante da redação em dias como esse.
Em dias como esse, queria um mundo onde fosse mais fácil resistir à tentação de deteriorar escolha, unha e sentimento. Por um mundo onde seja mais fácil digerir a queda, a quebra e a perda de qualquer-coisa-que-um-dia-foi-tão-viva. Mastigar e engolir essa sensação filha da puta que fica aqui, entalada.

Em dias como esse, esses meus sapatos molhados pela chuva esfriam o corpo todo, do-início-ao-fim-ao-meio. Essa chuva toda torta, que eu detesto tanto que me atrai, que me faz escorregar e dançar, escorregar e dançar, num ritmo descompassado e manipulado por ela. Eu, marionete.
"A vida é coisa doida", você diz. Sem querer esmaga e amassa a gente, sem a gente perceber.
Alô, ô vida, me deixa decidir sozinha, vai. Me deixa apagar sofrimento, me deixa pular essa, aquela, e mais outra parte. Me deixa me esconder, só hoje.
Me deixa ser covarde.

Direita, esquerda, direita, esquerda.
Um reto vazio.
"Quantos caminhos cabem em seus sapatos?"
Eu, pedaço. Você, outro: inteiro.
Um reto sem nós de mãos dadas.
Respirar todo esse vento, de chuva gelada, em dias como esse, é difícil pra caralho.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

VT - Retranca: Lapada Dreaming
Fim do mundo (8/1)
Morte no Tatuapé (9/1)
Paparazzi (10/1)

(Cabeça)

- Vem, vem, segura minha mão aqui, cês dois!
- Tá desmoronando tudo, a gente tem que correr depressa!
- Pega aquele carro! Você dirige?
- Eu dirijo!
- Vai, vai, corre, que o palco vai cair!
- Pára de rir! É sério!
- Não consigo, não consigo!
- Nem eu!!
- Eu tô achando tudo isso muito doido!
- Eu tô feliz!
- Que bom que tem vocês!
- Cooooorreeeeeeee!

(VHT)

- A Marília morreu.
- ESSA É A COISA MAIS ABSURDA QUE PODERIA TER ACONTECIDO!
- O Fábio é o maior suspeito.
- Ele é um bosta. Um bosta. Desde o começo, eu sabia!
- Eu vou interrogá-lo. Eu vou descobrir pra você.
- Eu não vou poder ficar.
- Eu sei.

(VHT)

- Dizem que eles nem moram juntos há tempos, na verdade, sabia?
- Não pode ser...
- É verdade! Ela já mora sozinha, mas ele vem algumas vezes durante a semana, de surpresa. É bom nem chegar perto, porque nunca se sabe o dia.
- Mas...
- E ele tem 72 anos.
- Quê?
- São os boatos, são os boatos... Parece que viram ele chegando de limousine, o cabelo branquinho, branquinho.

(Trilha final)

(Boa noite)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Inspira; sístole
expira; diástole
no mesmo compasso
mesma sintonia
respirar o presente
sem (des)esperar .
Ser um milhão de pessoas ao mesmo tempo - uma diferente pra cada toque diferente.
Não nasci pra ser metade, mas, sem perceber, sou (e faço) porcentagem.

Seres humanos são perecíveis.
Até eu.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Me dê acidez no estômago, um café forte pra misturar na úlcera, um soco na expectativa e um chute certeiro na idealização, mas não, não me faça ausência, descaso, indiferença, não.
Perceber como um banho pode ser duradouro quando se pensa na duração passageira de um encanto é de foder com qualquer estômago. Imagina só com um que tem propensão a gastrite.
Tanto quanto inegavelmente desconcertante, é também bonita a forma como os instantes se sobrepõem, ao passo em que se esquecem, ritmados. São surpreendidos, e então supridos, e então suprimidos. São deixados ali, no cantinho, pra hora do café-com-comprimidos.

Prontos para fazer passar toda a intenção.
Prontos para fazer passar toda a tensão. Todo o tesão.

Prontos para surgirem divergentes, descompassados; outra, e outra, e outra vez mais.