domingo, 22 de novembro de 2009

Corto, recorto, pinto com carvão. Suo tinta guache. Acendo todos os fósforos. Espalho cloro na sala. Cândida nos tapetes. Mordo fronhas já furadas. Leio remédios. Nada.

Grau

Não vejo a chuva, não vejo a guia, não vejo o vento.
A noite, hoje em dia, desconhecida qualquer.
Não vejo o breu, não vejo a lua, não prego o olho.

Martelo. Martelo, martelo. Não explico o motivo de fazê-lo, mas faço. Subjulgo, depois esqueço.
Esqueço, rabisco, esqueço. E volto a martelar.

Não vejo o cinza, não vejo as chaves, não vejo a neve. Nunca vi, só imaginei - O que todos os pensantes fariam em meu lugar. Imaginação, por um correr de horas. Um correr de dias, na verdade. Imaginação, e só isso.
Me pergunto, às vezes, se é real... E agradeço por não ser.
Talvez eu queira mesmo demais, chore demais, busque demais. E depois perde-se a graça.
Não vejo graça, não vejo mentira. E olha que já me calaram a boca por hoje... os olhos e a boca.
Pena que o silêncio não me convém.
Pena que o silêncio não me conviva.
Está tudo meio quieto, calmo demais, por hoje. Que bom que existe vida, ainda que fora de mim.

Não vejo as mãos, não vejos as pálpebras, não vejo os mares.
Só ouço onda e voz. Onda e voz, se sobrepondo cada vez mais depressa. Mais alto. Mais surdo.

Não vejo o ar. Não vejo fora, não vejo dentro.
Esguio-me, escapo, escorro.
Afinal, que há com essas paredes?
Quero derrubá-las então, reconstruí-las com meus dedos. Manchá-las com minhas cores. Erguê-las com meu perfume.

Não vejo o sebo. Não vejo força. Não vejo o ralo.
Verde, laranja, verde, preto, verde, vermelho. Por todos os cômodos.
Não vejo o verde.
Não vejo o risco.
Não vejo cera.

Não vejo dor. Não vejo febre, calor.
Estão todos a muitos gritos por hoje. E ainda assim não vejo as trilhas, os fundos, a pausa.
Ouço as vozes e acredito nos berros.
Vejo os berros.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Um quarto de hora

Um copo de água cheio.
Um grito, calado no peito.
O tempo, mais que sóbrio, lento.
Recesso, acesso, alento.

A flor, a cor, o campo.
A noite, a corte, o manto.

E mais duas peles absorvidas
Uma quente, outra fria
Outra fria, uma quente,
e assim sucessivamente.
Até restar apenas o momento,
o presente.

Sem pele, sem cor, mas cheio.
Como o primeiro copo, mais três.

E a percepção da sobriedade relativa.
E a comunicação, a vontade, a cretina:
A saudade, aplicada com morfina.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ponto de fusão

Olhei mais uma vez para suas mãos, fechadas em punho, o que sem dúvida alguma me intimidava. Forcei um sorriso constrangido, mas sentia-me asfixiada demais para demonstrar a cena sutil que pretendia.
Naquele momento, me senti guardada em um pote vazio de vidro com pouco ar. Guardada em um pote de vidro, tampado, para mais tarde.

-Se apresse, limpe logo esse rosto, menina. Suja assim não é bonito andar na rua. Ora, não precisa se envergonhar, todos nós precisamos de guardanapos às vezes. - e me entregou um pacote deles.

Podia sentir o vermelho tomar posse de minha face. Deslizei um guardanapo pelo rosto e quis vomitar.
Toda aquela dissimulação estava me enojando, mas o que eu podia fazer? Era mais um de tantos outros treinos para o espetáculo que logo se seguiria.

Ele me entregou meus braços e pernas e logo os guardei na bolsa. Saiu em passos rápidos, ainda como quem aperta o ar entre os dedos.
Segurei com força minhas têmporas, com medo de que caíssem, e o segui.
Tentei alcançá-lo, mas agora ele corria, quase como se fugisse de mim.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

em (re)construção

As frutas estavam frescas, e estavam enfeitando a mesa. É, estavam sobre a mesa e, janela afora, o sol pairava no alto, no topo do céu, embora quase alcançável com as mãos, quase trazido aqui, até o chão.
Bem alto. E bem perto.

Em dois cortes transversais, arranca-se a epiderme. Com algumas perfurações, alcança-se o osso. E sente-se fácil, por entre a ternura dos rasgos gelados, toda a fervura que pinga no assoalho. Bem assim, como receita de bolo. O ruim é ter que comê-lo após o prazo de validade. Ruim também é esse tira-manchas, nada eficiente - sempre deixa a desejar com esses resíduos opacos que permanecem. É preferível lavar de uma vez as mãos.

Enxuguei alguns pedaços de pano, ontem. Depois os torci. E torci para que logo secassem.
Choveu mais cedo do que o previsto, outra vez, e lá se foi todo o trabalho da secura. Inundou toda a varanda, e a garganta. Era visível o corante que escorria dos hematomas, rente à pele.

As frutas continuavam enfeitando a mesa. Hoje estavam secas, em sintonia com os raios a iluminar o céu, agora escuro, ressaltado pelas ondas do som dos trovões. Mas eram vistos no alto, no topo do céu.
Bem alto.
E bem perto.